sábado, 20 de julho de 2013

O Mestre da Zambujeira

Tirei as merecias férias em Odeceixe, ou seja, apenas dois dias, mas "parar é morrer" e faço por continuar a minha marcha que me leva direitinho atá à Zambujeira do Mar.
Quando chego sinto-me completamente extenuado, foram provavelmente os melhores e piores 18 quilómetros desde que saí de Lisboa. Além do corpo ainda se ressentir dos quilómetros que já trazia no pelo e das bolhas, o caminho apesentou-se tal como prometido: difícil, mas igualmente compensatório. Por mais que tentasse nunca seria realista ou fantasioso o suficiente para fazer justiça às paisagens que me foram oferecidas aos sentidos, porque além de ver é necessário sentir tudo o que nos rodeia. Chego à Zambujeira com a triste impressão do meu mapa estar errado, questiono três anciãos que se deixavam estar à sombra da igreja neste final de tarde, mas nunca me passou pela cabeça encontrar tamanha mestria geográfica e histórica daquela zona numa só pessoa. Um sábio de noventa primaveras de sabedoria, era conhecedor de toda a costa vicentina e até do nome e história de todas as praias, arribas e até de pequenas e singelas rochas que se erguiam por entre as ondas, desde Zambujeira até à minha odiada Arrifana.
Deu logo conta do erro, corrigiu-o e explicou-me que o que estava definido como praia do Castelo Velho era na verdade um promontório que se prolongava mar adentro. Segundo o mestre, deu-se, há muito tempo atrás, num dia de tormenta, um naufrágio de um navio que transportava madeira. Os marinheiros acabaram todos por se salvar subindo aquele braço de rocha, mas este porém foi condenado a chamar-se pelo nome do navio que tomou: Castelo Velho.
O mestre mostrou-se também algo incomodado com as mudanças dos nomes das praias, chegamos ambos à conclusão que todo o nome dado tem um significado e uma história, perdido no tempo, ou imortalizado até a ultima memória deste se perder com a morte de anciãos como este mestre. Ele falava do antigo nome da Praia D'Amália, que era desde que ele se lembrava a Praia da Seiceira e que nem mesmo quando ele servira na Marinha e lá teve de ir recolher duas peças de artilharia, que lá tinham dado à costa, esta não mudara de nome para relembrar tal facto. Infelizmente estava cansado e sem água, e vi-me por isso obrigado a retirar-me para satisfazer essas necessidades, apesar da minha vontade ser ficar e aprender tudo o que pudesse daquela fonte de sabedoria.



Um dos últimos moinhos tradicionais do Algarve

 A ponte que faz fronteira entre o Algarve e o Alentejo
 




 Os caminhos que me levam do parque de campismo até à praia de Odeceixe
 










 A paisagem que me fez companhia até a Azenha do Mar

 Porto de pesca de Azenha do Mar

 O caminho pare e após da Praia D'Amália
 







O caminho até a Zambujeira do Mar.
 
 
(...)
 
 
 
Acordo com uma manhã esplêndida para quem procura praia, para mim está um inferno, desmonto a tenda depois de um revigorante banho quente, já com a mochila às costas despeço-me do Buba (Bruno) e do Pedro, dois compinchas de Lisboa, com quem travei amizade ontem enquanto me instalava no parque, são duas personagens dignas de uma boa comédia, sempre ébrios e com uma felicidade que lhes era natural, tirando quando faziam frequentes pausas para se insultarem, despedimo-nos com intenção, se o acaso permitir, de nos voltarmos a ver na noite de Lisboa, quando estiver em melhores condições físicas para uma maratona de alcoolémia e festa. Fico a saber que o responsável pelo parque é também um caminhante por excelência e já palmilhou vastas áreas em território português, suíço, brasileiro, argentino e uruguaio, talvez um dia possa fazer o mesmo.
Tenho o pé esquerdo numa lástima, a sapatilha direita a desfazer-se, e vejo-me por isso numa difícil situação, mas muito à português faço um desenrasque com ligaduras para o pé e uns atacadores que tinha a mais para prenderem a sola ao resto da sapatilha, e parto assim. Lembro-me do velho proverbio chinês que diz: "há três coisas que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida" e admito em tom de brincadeira que eles se esqueceram dum coelho vadio que fixou uma meta. 



sexta-feira, 12 de julho de 2013

O Karma de um Caminheiro

Ao Diabo pedi a minha sorte, só pode. Acordei cedo e com vontade de caminhar, não esperava realizar a minha vontade de forma tão errada. Pela segunda vez caminho em sentido contrário, em vez de me encaminhar para Odeceixe, permito-me fazer 14 km a mais indo em direcção à Arrifana. Desfeito o mal-entendido voltei a Aljezur, almocei e solenemente deixei passar as horas em que o Sol se faz sentir mais violentamente. Por volta das 16 horas parti, desta vez, na direcção certa e com vontade de recuperar os quilómetros que tinha dado à terra durante a manhã, mas nada me preparou para a subida infernal com que me deparei logo à saída da vila. Passo por um parque de campismo nas imediações da vila, continuo ainda assim, vejo no meu mapa que a praia da Figueira fica perto e confiando no meu mapa e na informação de que lá seria um bom local para acampar, prossigo a caminhada..
Quando chego à praia, refresco os pés cansados e vou-me sentar, começo a pensar na vida e pouco depois lembro-me que eu não gosto de areia. Parece um pensamento absurdo, mas só peca por ser tardio, mas realmente passo bem sem ter a tenda cheia de areia. Vão ser por isso mais uns bons quilómetros até ao parque.
Chego ao parque com a noção de que se estava a criar uma bolha de água no meu pé direito e sei também que do desconforto até à dor vai apenas uma noite de descanso. Não faço caso e vou tentar resolver o assunto à velha maneira da tropa: agulha e linha. Não é necessário dizer que falho redondamente na resolução do problema, já não me interessa, apesar de me aconselharem a ficar e descansar o pé e mesmo a desistir da viagem, amanhã ponho um ou dois pensos e vou à experiência, nada me impedirá que acabar aquilo a que me propus.

 Ganesha: o meu bastão e companheiro de viagem


 As paisagens são de todo o modo inspiradoras de uma boa caminhada
O descanso prometido 


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"Se Deus não existe e a outra vida não existe - se disponho só desta vida, os deveres que tenho a cumprir são apenas os do instinto. Só tenho deveres enquanto não me pesam. Não te deixes iludir".
Raul Brandão


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Os primeiros passos: em sentido contrário

A manhã acorda-me cedo, rapidamente desmonto a tenda e vou procurar a estação de autocarros e quando a encontro pergunto os horários para Vila do Bispo, vou partir de lá para a próxima etapa deixando S. Vicente para uma altura posterior, dão-me mais uma hora para ir ao café por trás da estação, beber o tão importante café da manhã e perder-me nas páginas de Gogol.



(...)


Chegando a Vila do Bispo preparo-me mental e fisicamente, com uma bela bifana, para o meu primeiro dia de caminhada. Sigo afinal para o cabo se S. Vicente, embora o meu intuito fosse seguir até Pedralva, a norte, com este pequeno (grande) erro caminho para Sul, dou-me conta disso nos primeiros quilómetros do percurso, mas como não tenho datas fixas, continuo.
Os meus primeiros 15 km de caminhada são feitos com felicidade pelo meio do nada, com fugazes encontros com animais e pessoas, sinto-me livre e com o mundo pela frente, basta-me continuar a caminhar. Sento-me no fim da caminhada num espaço que fica entre o Forte de Beliche e o cabo de S. Vicente, uma vista simplesmente magnifica com estes dois monumentos e o mar a fornecer-me a recompensa pelo esforço da caminhada. Passo depois uma tranquila noite de descanso no parque de campismo de Sagres. Fiz o primeiro erro do percurso, mas foi um erro feliz.


 Vila do Bispo


 Os primeiros passos





As paisagens pelo caminho e o final da 1ª etapa

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Tenho uma conversa interessantíssima com o motorista do autocarro que me leva até Lagos, de novo, não daquelas conversas sobre a metafísica das coisas, mas uma conversa simples e sobre os sonhos que cada um tenta realizar, concordamos que viajar é uma das melhores coisas da vida. Mais uma vez, tão absorvido numa conversa que parecia ser de velhos conhecidos, esqueço-me de fazer as apresentações. Mais um conhecido de nome desconhecido.
De Lagos, apanho transporte para Aljezur, onde penso passar a noite, amanhã retorno à Rota Vicentina em direcção a Odeceixe.
Aljezur fica-me guardado não como a imagem da cidade mas pelo sentimento oferecido pelas vistas do castelo, encontro dentro do castelo um planalto que oferece uma visão sobre toda a cidade e sobre o vastíssimo vale, que me faz sentir uma personagem num conto do mestre Tolkien. Sento-me e ouço, provavelmente, a melhor "Karma Police" de sempre. Invejo-me por ter semelhante paisagem à minha frente e infelizmente não poder compartilhar este momento com mais ninguém. Nunca me senti tão em casa, estando fora dela.


 Igreja da Misericórdia de Aljezur





 Vista do e sobre o castelo
 Os mais fieis companheiros de um caminhante: a mochila e o bastão.

"Se me perguntassem o que queria ser - queria ser isto mesmo. Assim na eternidade te queria, minha alma, com o mesmo sonho, a mesma vida e os mesmos erros. Não te troco por outra alma."
Raul Brandão